Açoriano Oriental
“Não podemos mudar mentalidades se não mudarmos a própria sociedade”

Solange Ponte Psicóloga, membro da direção e coordenadora técnica da Associação de Planeamento Familiar dos Açores, aborda a edição deste ano do Azores Pride, bem como os principais problemas que afetam a comunidade LGBTQIA+ na Região Autónoma dos Açores



Autor: Nuno Martins Neves

O Azores Pride agrega imensas entidades e este ano realiza-se em duas ilhas. Os eventos na ilha Terceira já terminaram, em São Miguel começaram na sexta-feira e prolongam-se até dia 6. O que é o Azores Pride, para quem ainda não sabe?
Os Azores Pride é um movimento cívico, cultural, ativista de dignificação dos direitos LGBTQIA+ e é importante deixar aqui claro que são direitos humanos de base. E é para isso que nós, enquanto coletivo, trabalhamos com estas ações e queremos oferecer um programa diversificado, como forma de dignificar cada vez mais a luta desses direitos.
Não é à toa que este ano, 2024, é um ano particular, pois em abril celebrou-se 50 anos da Revolução dos Cravos. E para nós, enquanto coletivo, tem um duplo significado: a dignificação dos direitos LGBTQIA+, o desconstruir os preconceitos que ainda existem na nossa sociedade; e, paralelamente, associarmos aos 50 anos da Revolução, que nos trouxe o conceito de Liberdade e de Igualdade.
E se remontarmos para a nossa sociedade, esses conceitos - que parece que temos como dados adquiridos e que são de facto garantias fundamentais - depois a prática ainda vemos discriminações associadas a essa falta de liberdade, de sermos quem nós quisermos. Esse conceito de Igualdade que na sociedade não está tão patente e é para isso que o Azores Pride existe: para fazermos ver, enquanto consciência coletiva, a todos e a todas, que é um movimento de defesa desses direitos.

Através de que iniciativas é que chamam a atenção para a defesa destes direitos?
São muitas iniciativas, é um programa diversificado que vai desde palestras, encontros, apresentações de performances, debates em escolas, visionamento de filmes, arraiais. É por aí que trazemos essa consciência coletiva, pois queremos oferecer não só um programa cultural, como um programa multifacetado, que insira a cultura e o ativismo, que meta o setor da Educação, da Saúde. Eu penso que é por aí, ao trabalhar com todos os quadrantes da sociedade que nós vamos poder contribuir para que haja essa construção digna desses direitos.

Também é um dos objetivos do Azores Pride desafiar as mentalidades, colocar as pessoas a pensar?
Eu acho que só se combate a desinformação com informação. A programação começou em junho, mas na realidade começou em maio, com o visionamento do filme “Lobo&Cão”, da Cláudia Varejão, que é uma cineasta que veio para a Região rodar um filme sobre a personalidade queer, o que é isto de ser diverso nos Açores, em várias escolas, com debate para o público jovem. Que os meta a pensar e a refletir sobre estes temas: o que é isso de orientação sexual, identidade e expressão do género, características sexuais.
O debate serve para isso, desconstruir preconceitos existentes, quebrar estigmas e estereótipos existentes à população LGBTQIA+ e dar a entender que são direitos humanos de base.
A informação nunca é demais, está visto na literatura que quanto mais informação tivermos, melhor escolhas fazemos. E o saber é poder.
Paralelamente, pela primeira vez na Região, também temos uma espécie de performance pedagógica, com a Valley Dation, um performer já conhecido dos Açores, para crianças dos 3 aos 12 anos, tendo como parceiro o Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas.

Falava há pouco do filme da Cláudia Varejão. Das projeções realizadas nas escolas, que questões eram colocadas pelos alunos?
As discriminações, violações e microagressões que se verificam ao longo do filme. O facto de haver confusão entre o que é isto da orientação sexual, com identidade e expressão do género. Muitas das vezes, são conceitos confundidos e leva a que os jovens cometam essas microagressões contra outros jovens, especialmente nas escolas. E nós trazemos essa reflexão, desconstruindo todos estes conceitos.
Muitas das vezes, esses estereótipos surgem e percebemos que é quase intergeracional, que é passado no contexto da família e os jovens bebem essa informação, que é errada, e é nosso papel, enquanto agentes educativos e pedagógicos, quebrar essa perpetuação.

A sociedade açoriana ainda é conservadora ou já se nota alguma abertura?
Eu gostaria de dizer, e mentir um bocadinho, que vivemos numa sociedade descomplexada, que aceita a diversidade na sua globalidade. Mas isso não é bem verdade: nós ainda vivemos numa sociedade conservadora, fruto do sistema patriarcal que existe, de uma sociedade heteronormativa que vem dizer que tudo o que foge à regra do que é considerado normal é visto como anormal. E temos de desconstruir isso. A nossa sociedade ainda é bastante conservadora, mas notamos já alguma abertura, fruto do trabalho das instituições que fazem parte da comissão organizadora do AzoresPride - e puxando um pouco a brasa à minha sardinha - e da APF, em especial do projeto (A)MAR, que é o primeiro gabinete especializado para as questões LGBTQIA+ que existe nos Açores.
O objetivo é passar essa informação aos vários quadrantes da sociedade. Nós não podemos achar que os jovens e as jovens vão ser mais abertos...

Se a sociedade continuar fechada?
Nem mais. E portanto, temos formado vários setores, da Saúde, da Educação, agentes culturais, os agentes policiais, que desde o ano passado têm vindo a receber formação.
Essa consciência coletiva é de todos e não podemos mudar mentalidades se não mudarmos a própria sociedade. Quem é a sociedade?Somos nós, todos e todas. Felizmente, temos feito esse trabalho e queremos continuar, para depois a sociedade perceber que somos todos tão diversos.

Há algum setor mais reticente?
Se calhar a própria Educação. Não digo os professores, mas os conselhos executivos. Têm criado algumas resistências.

O projeto (A)MAR fez recentemente três anos. Que balanço faz?
Acho que já fizemos bastante e dizemos isso com muito orgulho. Nós sabemos que há discriminação nos Açores- sempre existiu, não é de agora - e sempre existiram associações que vieram cá trabalhar a prevenção dessa discriminação. Mas não havia um gabinete especializado e a Cláudia Varejão, em 2021, desafiou-nos a criá-lo, para a população LGBTQIA+ e seus familiares. Andamos a partir pedra e olhamos para trás e estamos a conseguir aquilo a que nos propusemos na Região, ao nível do acompanhamento psicológico.
Desde 2023 - e não estou a remontar à data de abertura - até ao presente, prestamos na Região 281 atendimentos presenciais, psicológicos e psicossociais. Intervimos em ações nas escolas para 55 estabelecimentos de ensino, que abrange um universo de 1500 jovens; 15 ações de formação a profissionais, como falava há bocado para os hospitais, centros de saúde, PSP, Teatro Micaelense; 33 reuniões com entidades parceiras - e têm surgido novas parcerias, pois entendo que este trabalho é colaborativo - desde o Centro de Terapia Familiar, a Polícia Municipal, etc.
Temos investido muito na formação, mesmo nas redes sociais. Pois temos que encarar o (A)MAR como um projeto regional, embora só tenha espaço físico em São Miguel, estamos presentes nas nove ilhas.

E têm chegado pedidos de ajuda?
Sim, do Faial, do Corvo, das Flores, fruto do investimento nas plataformas digitais. Temos veiculado informação e formação inclusiva, fidedigna através das redes sociais, para que percebam que podem recorrer ao projeto se se sentirem discriminados. Muitos jovens estão em fase de reafirmação do seu processo de transição de género, enquanto jovens trans. Nós conseguimos um grande ganho, com o hospital, ao criar a consulta de incongruência de género, com duas colegas que trabalham em parceria connosco. E um jovem que esteja em processo de resignação corporal, terapêutica hormonal, nós fazemos o encaminhamento para o hospital. Os jovens têm aqui cuidados de saúde gratuitos. Por isso temos tido vários contactos de jovens das outras ilhas.
Uma outra novidade do projeto foi a criação de um gabinete físico na Ribeira Grande, nas duas cidades mais populosas da ilha, em parceria com a Câmara Municipal. E o nosso mote agora é criar um gabinete físico na ilha Terceira, pois têm-nos chegado muitos pedidos de apoio de acompanhamento psicológico nessa ilha. E queremos consolidar o (A)Mar como projeto regional. Vamos dar formação às outras ilhas, é verdade, mas fisicamente não estamos presentes. Este é o próximo passo para nos consolidarmos como estrutura especializada na Região.
E queremos trazer dados estatísticos sobre estes fenómenos para a Região, que não existem. Mesmo as próprias estruturas nacionais, quando fazem o retrato do país, não há dados sobre os Açores. Quantas pessoas sofrem de discriminação, quantas sofrem microagressões devido à sua orientação sexual?Não há dados e nós, enquanto projeto, queremos começar a criar esses dados, fruto dos atendimentos, das pessoas que nos chegam, dos acionamentos para o hospital. Queremos dar à região dados estatísticos fiáveis.

Para o Governo Regional dos Açores poder atuar? Pois só se pode corrigir o que conhecemos?
Exato. Senão, de que servem os planos? A Comissão Europeia, o Governo da República e o Governo Regional dos Açores têm planos muito bem criados, mas é preciso depois que nós, enquanto estruturas, possamos ter estatísticas para fazer cumprir e ajustar esses planos. Sou completamente a favor da criação de políticas públicas ajustadas, mas para isso, têm de haver dados estatísticos que nos façam olhar para isso. Se não há dados, o que não se vê, é como se não existisse. E existe discriminação nos Açores. Eo Azores Pride vem também fazer isso: estamos a dar cartas com este programa, para posicionamento dos Açores na Europa, fazendo jus à própria estratégia da Comissão Europeia, de igualdade LGBTQIA+ até 2025. Queremos fazer dos Açores mais inclusivos.


Pode ouvir a entrevista a Solange Ponte na íntegra na rádio Açores TSF, este domingo, a partir das 11h00, com repetição segunda-feira, a partir das 14h00














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