Açoriano Oriental
Entrevista
Pauliana Valente Pimentel: De 'ilha' em 'ilha' até que não sobrem diferenças na juventude de São Miguel

Pauliana Valente Pimentel deixou-se navegar pelo 'Narcisismo das Pequenas Diferenças' que a condição insular fez conservar em São Miguel. De jovem em jovem - ou melhor, de 'ilha' em 'ilha' -, a fotógrafa foi aportando nos cais das assimetrias socioeconómicas micaelenses. O resultado, para já, são 23 fotografias que exploram o lado belo desses mesmos contrastes e que se propõem a aniquilar fronteiras entre jovens. Essas mesmas 'ilhas' podem ser visitadas na Galeria Fonseca Macedo até 28 de abril.      



Autor: Miguel Bettencourt Mota

O Narcisismo das Pequenas Diferenças é o nome da exposição. Mais do que isso, é uma teoria de Freud que sustenta a ideia de que são as pequenas diferenças que cavam o fosso, a estranheza, entre povos, que são à partida iguais. Por que razão ligar o conceito freudiano aos contextos que encontrou em São Miguel e registou em fotografia?


Eu tropecei neste título por acaso, no início do ano, e não sabia sequer que era uma teoria de Freud. Mal surgiu este título - e não sabendo da teoria – achei que era bastante sugestivo para o meu trabalho. Isto porque estou a retratar jovens (naquela fase em que lhes é próprio algum narcisismo e vaidade) e porque constatei que na juventude aqui em São Miguel há uma estratificação social muito vincada...Acho que o facto de ser uma ilha, no meio do Atlântico, permitiu cristalizar um pouco do tempo da nossa História enquanto país. Portanto, apesar de os jovens serem todos iguais – terem crenças e medos semelhantes, usarem telemóvel, ou redes sociais – na realidade não se misturam. Ter ido fotografar a Rabo de Peixe e também em Ponta Delgada permitiu constatar essa estranheza entre eles, apesar de viverem numa ilha e perto uns dos outros...


...É Como se estivessem insulados no seu próprio contexto?


Sim, é quase como se existissem pequenas ilhas dentro da ilha. Eu achei isso curioso e este título fala exactamente disso. Melhor foi depois verificar que a teoria de Freud está ajustada ao trabalho.


Reparou, portanto, que as realidades afectas aos jovens micaelenses são assimétricas. Nas 23 fotografias que constam da exposição que contrastes saltam à vista?


Eu tanto fotografei jovens de famílias tradicionais abastadas – nas casas deles vi autênticos museus [risos] – como jovens de Rabo de Peixe, com menos posses. Aliás, em Rabo de Peixe, tive muita matéria por onde trabalhar...Há uma grande concentração de jovens e foi, por exemplo, muito engraçado reparar que naquela mesma localidade erguem-se outras 'duas pequenas ilhas': Rabo de Peixe de mar e Rabo de Peixe de terra. A população tem ali uma fronteira bem definida e que eu pude reparar quando estive nas Festas da Caridade. Por um lado, há os pescadores (mais pobres) e aqueles que, por outro, têm grandes quintas (como emigrantes que regressaram dos Estados Unidos da América e Canadá).


As questões de género também estão patentes, certo?


Sim, fotografei outros tipos de contrastes. Encontrei homens que se transvestem, que gostariam de ser mulheres, ou que são gays. Além disso, reparei que os açorianos – como têm esta natureza inacreditável – são muito voltados para o desporto e para o ar livre...Por isso, foram também retratados jovens que praticam equitação, outros que fazem surf, ou mesmo patinagem artística. Acho que fica, por pouco que seja, o registo do que é a juventude aqui [em São Miguel]. Na exposição, o facto de as imagens estarem todas do mesmo tamanho e misturadas, faz com que eu aniquile um pouco as diferenças...


...Para além do papel de fotógrafa interessa-lhe esbater fronteiras, diluir os estratos sociais, trazer alguma igualdade, é isso? É isso que a (co)move?


Também. O meu trabalho é bastante social e dado de uma forma até política. Eu gosto de fazer algo que coloque as pessoas a pensar e trabalho com a juventude há já algum tempo...


...'Quel Pedra' é disso exemplo...


...Exacto, 'Quel Pedra' ou mesmo os 'Jovens de Atenas'. Quando rebentou a crise na Grécia fui lá tentar perceber como é que eles viviam a instabilidade e olhavam ao futuro. Aqui, em São Miguel, interessou-me perceber como é que os jovens lidavam uns com os outros. Interessante foi também ver que alguns jovens fotografados foram este ano para a universidade e tiveram de sair da ilha...Essa transição também me interessou, tal como perceber se regressariam.


Só pretende mostrar este trabalho em São Miguel?


Eu montei esta exposição na Galeria Fonseca Macedo para os açorianos, mas eu gostaria muito de levá-la, por exemplo, para Lisboa e poder assistir à forma como as pessoas 'de fora' verão tudo isto. Porque uma coisa é os açorianos e os jovens açorianos virem vê-la e, naturalmente, encontrarem sinais que lhes são muito próprios. Outra, será a interpretação de quem a visitar em Lisboa.


Há mais do que retratos de pessoas na exposição?


Quem for, não vai ver só retratos. Também há retratos dentro da paisagem e pormenores que indicam muitas coisas sobre os Açores. Por exemplo, tenho retratada uma quinta com uma araucária e depois disseram-me que era uma árvore que muitas famílias ricas tinham nas suas propriedades...Lá está, um açoriano vê melhor certos aspectos. Tenho, por isso, uma fotografia do Liceu [Antero de Quental] porque achei que seria importante mostrar um dos sítios onde muitos jovens se cruzam e se verifica uma grande 'misturada'.


O seu trabalho está completo?


Eu dividi este trabalho em três momentos. Agora, estou a apresentá-lo no Tremor, na Galeria Fonseca Macedo, mas comecei a desenvolvê-lo no Walk & Talk e é onde quero apresentá-lo completo este ano. Quando chegar a altura, quero muito deslocar o trabalho para a rua. Penso ser importante fazer um slideshow, uma projeção de imagens no exterior, e a minha ideia é fazê-lo em Rabo de Peixe, no cais e à noite. Terá muitas mais imagens porque eu, em função do tamanho da galeria, tive de selecionar...Não sei se será possível, mas seria bom que algum artista açoriano pudesse fazer uma música para acompanhar o momento.


Com que sentimentos ficou de Rabo de Peixe?


Eu confesso que tenho um grande fascínio por Rabo de Peixe. Gosto muito do lado da vivência na rua, da pesca...Depois, interrogo-me: serão eles que são fechados, ou será a restante população? Lembro-me de muitos micaelenses – que não eram de lá – ficarem impressionados com o facto de ir para Rabo de Peixe de máquina fotográfica na mão. Perguntavam-me: 'não tens medo de ser assaltada?', 'Vais sozinha?'...Acho que há um estigma, um desconhecimento, um medo, relativamente a Rabo de Peixe...



...As histórias 'duras' que, muitas vezes se reproduzem, revelaram-se, portanto, mais mito do que verdade quando esteve em contacto direto com a localidade e com a população...


...Acho que há mais mito, sim. Em boa parte porque julgo que as pessoas ou não vão lá, ou quando vão, vão de fugida. Também há quem procure muito fotografar o lado pitoresco, do género: 'olha que giro, os macaquinhos, os pobrezinhos' e vão-se embora. Eu não me identifico muito com esse estilo 'National Geographic'. A minha abordagem passa por chegar, estar, regressar e conhecer...


...Foi assim em Rabo de Peixe?


Foi. Por exemplo, estive presente de propósito nas Festas da Caridade para poder conhecê-los melhor. É a altura em que eles abrem as suas casas, dançam e saem à rua com os grupos de castanholas...Há ali uma grande comunhão e eu fui recebida como se fosse da comunidade. Só consegui fazer o trabalho que fiz, porque houve essa partilha e essa aceitação...


São maioritariamente as pessoas os motivos dos seus trabalhos. Por que razão? O que lhe interessa nelas?


Eu tenho uma forte apetência e gosto em conhecer o outro. Depois são estas preocupações que eu tenho...Na verdade sou uma pessoa muito preocupada com questões sociais e políticas (...) Mas o que eu gosto mesmo é de entrar na casa das pessoas e estar com elas na sua intimidade. Adoro isso e não é incomum esquecer-me do tempo a passar. A fotografia faz desse gosto a combinação perfeita [risos]


Como faz para que os fotografados esqueçam a presença da máquina?


Cá está, antes da fotografia vêm muitas horas de convívio. Eu, às vezes, até aprecio mais estar com eles a conversar e a perceber a vida deles do que estar a fotografar... Eu até andei de cavalo, vejam bem [risos]! As fotografias, por consequência, acabam por sair sem que eles se apercebam. Claro que existem fotos com eles em pose, mas surgem depois de eu já perceber os seus códigos.


O que a seduziu mais nos jovens açorianos?


(...) Há aqui [nos Açores] uma riqueza incrível. Os jovens são lindos e interessantes...Têm um lado muito característico que é próprio de quem vive numa ilha; há uma nostalgia muito presente de quem vive rodeado de mar - que não sei bem explicar - mas que me agrada bastante. Ao mesmo tempo, são 'super' queridos e de uma entrega impressionante. Há uma nostalgia, mas também um interesse pelo outro. Receberam-me muito bem e realmente houve uma grande ligação entre mim e eles.


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